Recentemente terminei a leitura do clássico A Metamorfose de Franz Kafka. De extra, também li Um artista da fome.
Conheci Kafka durante o Curso de Direito, em que precisei
ler e estudar sua obra O Processo.
É um autor por assim dizer místico, que faz o leitor viajar
em elucubrações, em ideias não tão óbvias, intrigantes. Ao fim não poderia
resultar diferente do que resoluções filosóficas acerca da vida, do cotidiano.
Em O Processo, a personagem principal se vê atacado pela
Justiça de algo que não consegue sequer saber do que se trata. Sendo
menosprezada, ao fim de repetidas ilações de que se trata de uma pessoa ruim,
acaba por aderir à tese acusatória. Ou seja, a mentira repetida, mesmo sem
saber da verdade, tornou-se verdade, convencendo a própria vítima que sua
condenação era prudente.
Vou me ater a esta síntese para aguçar a leitura deste
clássico, de poucas páginas, que pode ser lido em horas.
O livro faz refletir acerca das transformações nas quais
passamos. Muitas vezes a vida é cheia de obstáculos e caminhos tortuosos e é
interessante que Gregor em nenhum momento pretendia deixar seu trabalho, queria
honrar seus compromissos, mesmo estando ou sendo diferente. Ou seja, tinha
senso de responsabilidade, da cruz, do sacrifício que a vida e o convívio
social lhe impunham. Mas, com o desdém da família, sobreveio-lhe a morte.
A crítica consiste claramente na reação dele e da família a
estas realidades inescapáveis: sofrimento e a morte. Portanto o sacrifício de
viver e a morte são as tônicas do livro.
Algumas pessoas tentam imaginar que o sofrimento inexiste,
que é fruto da nossas cabeça, que é possível viver sem dor, sem perdas. Para
falsear tal argumento basta questionar se é possível estar feliz e alegre o
tempo todo. Sabemos que é impossível. Basta que um pai acorde a noite com o
choro de seu filho (ainda que seja meramente por estar com frio e ter chutado
as cobertas) para saber que, ao despertar, ainda que haja amor na atitude e que
se precisasse faria isso mil vezes pelo pequeno, sentiria sono ou frio ou
ficaria levemente aborrecido.
Ossuário na cripta da mencionada Igreja em Roma |
Preocupar-se com ambas as coisas significa organizar atos e
ideias que não os extingam, porque impossível. Como dito, são realidades
inescapáveis. Mas a atitude frente a estas coisas precisa ser prudente e de se
questionar: ainda assim é possível existir beleza? Qual é a beleza do mundo atual?
Essa é a segunda crítica que, em Um Artista da Fome, o
pensamento de Kafka nos deixa ainda mais evidente. O jejuador ficava numa
jaula, porém além de tantos jejuadores tal atividade não era bem fiscalizada o
que aos olhos do público fazia que duvidassem do seu jejum. O artista honrado,
pois, sofria com o indiferentismo. A beleza acabou. Não para si, mas para os
homens. Morreu. Foi substituído na jaula por uma pantera que “nada lhe faltava”,
traziam-lhe “a comida que lhe agradava”,
“revoluteava e dava saltos”, “nem mesmo parecia lamentar a liberdade”. E
ninguém se afastava dali para ver tal espetáculo.
Mais uma morte nas histórias de Kafka e o questionamento do
que é a verdadeira beleza. As pessoas se apaixonam, mas a beleza está na
partida, na esperança do reencontro, na saudade. O que seriam então da paixão
se não fosse a ausência de quem é amado?
Certa feita minha mãe comentou de que amava os filhos
indistintamente. Eu concordei discordando. Disse que se tivesse um filho
deficiente o amaria mais. E não seria o correto? Não há beleza nisso?
A família de Gregor Samsa queria se desfazer dele, assim
como se desfizeram do jejuador. É mais fácil optar por um caminho de evitar o
sofrimento e a morte, simplesmente aniquilando-os. Acabe com o monstro e tudo
melhorará. Substitua uma vida humana por um cachorrinho. Um estupro por um
aborto.
Justamente por saber que a morte e o sofrimento são certos,
mas também inesperados, é que devemos cuidar da vida, das pessoas, daquilo que
importa, da cultura humana, dos valores que nos são sagrados.
Pietà de Michelangelo - Obra renascentista de beleza singular |
Kafka é excêntrico e nos tira do eixo para que façamos questionamentos filosóficos a este nível e redescubramos o sentido da palavra beleza.