quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Morte e sofrimento: A perspicácia de Kafka que leva à beleza da vida

 Recentemente terminei a leitura do clássico A Metamorfose de Franz Kafka. De extra, também li Um artista da fome.

Conheci Kafka durante o Curso de Direito, em que precisei ler e estudar sua obra O Processo.

É um autor por assim dizer místico, que faz o leitor viajar em elucubrações, em ideias não tão óbvias, intrigantes. Ao fim não poderia resultar diferente do que resoluções filosóficas acerca da vida, do cotidiano.

Em O Processo, a personagem principal se vê atacado pela Justiça de algo que não consegue sequer saber do que se trata. Sendo menosprezada, ao fim de repetidas ilações de que se trata de uma pessoa ruim, acaba por aderir à tese acusatória. Ou seja, a mentira repetida, mesmo sem saber da verdade, tornou-se verdade, convencendo a própria vítima que sua condenação era prudente.

Em A Metamorfose o tom kafkiano relativo ao indiferentismo parece aflorar ainda mais, o que representa uma óbvia preocupação do autor no seu tempo. Como se verá, parece mais atual que nunca. Gregor Samsa tem um pesadelo em que nota que se transformou num terrível inseto. Achava que era um pesadelo e no fim descobriu que era vida real. Sua família, ao descobrir, o destratou, faziam nem o mínimo para lhe garantir a vida e o consideravam um monstro. Queriam até se desfazer dele. Ao final morre e a família se sente aliviada.

Vou me ater a esta síntese para aguçar a leitura deste clássico, de poucas páginas, que pode ser lido em horas.

O livro faz refletir acerca das transformações nas quais passamos. Muitas vezes a vida é cheia de obstáculos e caminhos tortuosos e é interessante que Gregor em nenhum momento pretendia deixar seu trabalho, queria honrar seus compromissos, mesmo estando ou sendo diferente. Ou seja, tinha senso de responsabilidade, da cruz, do sacrifício que a vida e o convívio social lhe impunham. Mas, com o desdém da família, sobreveio-lhe a morte.

A crítica consiste claramente na reação dele e da família a estas realidades inescapáveis: sofrimento e a morte. Portanto o sacrifício de viver e a morte são as tônicas do livro.

Algumas pessoas tentam imaginar que o sofrimento inexiste, que é fruto da nossas cabeça, que é possível viver sem dor, sem perdas. Para falsear tal argumento basta questionar se é possível estar feliz e alegre o tempo todo. Sabemos que é impossível. Basta que um pai acorde a noite com o choro de seu filho (ainda que seja meramente por estar com frio e ter chutado as cobertas) para saber que, ao despertar, ainda que haja amor na atitude e que se precisasse faria isso mil vezes pelo pequeno, sentiria sono ou frio ou ficaria levemente aborrecido.

Ossuário na cripta da mencionada Igreja em Roma

A morte é a realidade mais dura que existe. A Igreja Católica representa bem em imagens, e particularmente na Igreja de Santa Maria della Concezione dei Cappuccini em Roma, onde caveiras deixam claro que essa deve ser uma preocupação constante.

Preocupar-se com ambas as coisas significa organizar atos e ideias que não os extingam, porque impossível. Como dito, são realidades inescapáveis. Mas a atitude frente a estas coisas precisa ser prudente e de se questionar: ainda assim é possível existir beleza?  Qual é a beleza do mundo atual?

Essa é a segunda crítica que, em Um Artista da Fome, o pensamento de Kafka nos deixa ainda mais evidente. O jejuador ficava numa jaula, porém além de tantos jejuadores tal atividade não era bem fiscalizada o que aos olhos do público fazia que duvidassem do seu jejum. O artista honrado, pois, sofria com o indiferentismo. A beleza acabou. Não para si, mas para os homens. Morreu. Foi substituído na jaula por uma pantera que “nada lhe faltava”, traziam-lhe “a comida que lhe agradava”,  “revoluteava e dava saltos”, “nem mesmo parecia lamentar a liberdade”. E ninguém se afastava dali para ver tal espetáculo.

Mais uma morte nas histórias de Kafka e o questionamento do que é a verdadeira beleza. As pessoas se apaixonam, mas a beleza está na partida, na esperança do reencontro, na saudade. O que seriam então da paixão se não fosse a ausência de quem é amado?

Certa feita minha mãe comentou de que amava os filhos indistintamente. Eu concordei discordando. Disse que se tivesse um filho deficiente o amaria mais. E não seria o correto? Não há beleza nisso?

A família de Gregor Samsa queria se desfazer dele, assim como se desfizeram do jejuador. É mais fácil optar por um caminho de evitar o sofrimento e a morte, simplesmente aniquilando-os. Acabe com o monstro e tudo melhorará. Substitua uma vida humana por um cachorrinho. Um estupro por um aborto.

Justamente por saber que a morte e o sofrimento são certos, mas também inesperados, é que devemos cuidar da vida, das pessoas, daquilo que importa, da cultura humana, dos valores que nos são sagrados.

Pietà, obra renascentista de Michelangelo.
Pietà de Michelangelo - Obra renascentista de beleza singular

Kafka é excêntrico e nos tira do eixo para que façamos questionamentos filosóficos a este nível e redescubramos o sentido da palavra beleza.

4 comentários:

  1. Muito bom, me instigou a ler o autor, sempre tive curiosidade no livro metarmofose... Maravilhosa reflexão, parabéns

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  2. Excelente Guilherme, belo artigo. Um grande abraço!

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  3. Texto denso e que leva à reflexão sobre o sentido da vida. Muito bom!

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  4. Muito bom Guilherme! Me interessou muito o artigo.

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