sábado, 5 de dezembro de 2020

Pandemia: da tirania à virtude

Este foi o ano do medo. Nasceu junto à pandemia uma vontade de interferir na vida alheia de tal modo a tolher-lhe a liberdade. Lockdowns, e as mais diversas restrições, tudo com o objetivo, quiçá miraculoso, de salvar vidas.

A questão é que manipulou-se o Estado e a lei para  trazer um ideal do qual foge da sua real razão de existir. A tirania sempre foi alvo dos sistemas jurídicos ocidentais modernos, cuja mitigação advém de uma série de mecanismos, seja pelo próprio controle judicial, parlamentar e as próprias eleições periódicas.

Nesse momento vemos o império da tirania ser exercido por todo corpo do establishment. No Brasil a exceção é o próprio Presidente da República que não acatou tal gestão, mas acabou engolido pelas instituições.


O que se coloca em jogo, para tentar encabrestar a humilde massa, é a soberana e irrefutável ciência que nunca erra, mas também nunca vai pagar qualquer prejuízo pela miserabilidade ascendente.

Por óbvio que a ciência é uma verdade transitória, cujas conclusões são postas em xeque tão logo criadas. É a essência do próprio avanço. Tão óbvio, portanto, é que se tenha um mínimo de ceticismo para não aceitar qualquer coisa, de qualquer jeito, com tamanho imediatismo, ao passo que também se está aberto ao novo.

Em pouco tempo já foi possível atestar erros grosseiros de previsões ditas científicas de milhares de mortos. Tudo isso não nos ficará claro no curto prazo, mas a história irá bem relatar estes fatos daqui talvez 20 anos.

Além destas constatações iniciais, deste momento pode-se extrair alguns fatos de forte impacto social, que podem servir para uma profunda reflexão:


1- Tempo. Talvez nunca tenhamos passado tanto tempo juntos, em família. É fato que muitos relacionamentos vieram a terminar no período, mas não é neste mal que quero me ater. Este momento serviu para um grande contato e fortalecimento dos laços conjugais e familiares.

Tempo para dizer “eu te amo”, jogar conversa fora, dar atenção e doar-se ao outro. Tempo para compartilhar os afazeres domésticos e até praticar divertimentos no âmbito do lar. Numa época de tantas distrações redescobrir o valor da família como célula mãe da sociedade é realmente fantástico.

 

2- Educação. Foi, e ainda é, desafiador ter as crianças e jovens afastados do ambiente escolar e, quando muito com aulas à distância. A grande frustração para as famílias foi o choque entre a dificuldade e até impossibilidade, em alguns casos, do tal ensino à distância. Descobriu-se estar realmente distante da educação. Frustração maior são as descobertas ante o despreparo e até a completa incapacidade de lecionar o que quer que seja aos seus filhos.

Lembremos que a educação compulsória a nível estatal veio a ser regra apenas nos últimos dois séculos. Houve, pois, uma terceirização da educação.

Daí que extraio mais um saldo positivo de tal momento. Nunca os pais tiveram tanto interesse em participar do processo educacional de seus filhos, nunca as lojas de brinquedos educativos (vide os montessorianos) venderam tanto, inclusive livros, apostilas e materiais para homeschooling.

Há um retorno, uma busca, das responsabilidades familiares frente ao processo educacional da prole. É um amadurecimento, um retorno para as bases, um verdadeiro desabrochar da caridade no seio familiar.

 

3- Fé. Uma das maiores agressões que as pessoas sofreram foi relativa à prática da fé. O valor que era inalienável e inegociável passou também a ser controlado seja para reuniões de culto seja para atos litúrgicos. Para os católicos até obrigatoriedade de hóstias “pré-embaladas para uso pessoal” foi determinado pelo Estado, o que é indubitavelmente um sacrilégio.

O momento leva a pensar na era das catacumbas, na era da perseguição aos cristãos. Viviam num submundo, às margens da sociedade. Não obstante, ao invés sufocar a fé, o que aconteceu é que foi revigorada, robustecida.

Orações em família ou individuais, leitura de livros religiosos, da Bíblia, a aquisição de itens sacros. Também lives, vídeos, artigos e até cursos online para falar de religiosidade e fortalecer a fé se proliferaram no mundo digital. A experiência de fé foi sem dúvidas aumentada durante este momento, o que é mais um saldo positivo.


G. K. Chesterton
G. K. Chesterton foi um jornalista, poeta e filósofo inglês.

Por fim, parece-me que este período de pandemia é um convite à coragem. Chesterton diz que “o ambiente mais perigoso de todos é o ambiente de comodidade”. Por óbvio que comodidade pouco se teve, mas, como vimos, muitas pelejas, especialmente por parte daqueles que perderam trabalho e rendimentos. Mas, como diz o mesmo autor, “é fácil ser louco: é fácil ser herege. É sempre fácil deixar uma era ter sua cabeça; o difícil é manter a própria. É sempre fácil ser modernista, como é fácil ser esnobe. Ter caído em qualquer dessas declaradas armadilhas de erro e exagero os quais moda após moda e seita após seita prepararam ao longo do caminho histórico da cristandade, de fato, teria sido simples. É sempre simples cair; há uma infinidade de ângulos nos quais qualquer um cai, mas apenas um no qual permanece em pé”.

Que estas palavras de Chesterton nos sejam convite para permanecermos de pé e revigorarmos as virtudes que não são novas, mas velhas, ao passo que também são essenciais, e que precisam continuar a ser resgatadas com coragem, mesmo em meio ao medo e ao caos do atual momento.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Morte e sofrimento: A perspicácia de Kafka que leva à beleza da vida

 Recentemente terminei a leitura do clássico A Metamorfose de Franz Kafka. De extra, também li Um artista da fome.

Conheci Kafka durante o Curso de Direito, em que precisei ler e estudar sua obra O Processo.

É um autor por assim dizer místico, que faz o leitor viajar em elucubrações, em ideias não tão óbvias, intrigantes. Ao fim não poderia resultar diferente do que resoluções filosóficas acerca da vida, do cotidiano.

Em O Processo, a personagem principal se vê atacado pela Justiça de algo que não consegue sequer saber do que se trata. Sendo menosprezada, ao fim de repetidas ilações de que se trata de uma pessoa ruim, acaba por aderir à tese acusatória. Ou seja, a mentira repetida, mesmo sem saber da verdade, tornou-se verdade, convencendo a própria vítima que sua condenação era prudente.

Em A Metamorfose o tom kafkiano relativo ao indiferentismo parece aflorar ainda mais, o que representa uma óbvia preocupação do autor no seu tempo. Como se verá, parece mais atual que nunca. Gregor Samsa tem um pesadelo em que nota que se transformou num terrível inseto. Achava que era um pesadelo e no fim descobriu que era vida real. Sua família, ao descobrir, o destratou, faziam nem o mínimo para lhe garantir a vida e o consideravam um monstro. Queriam até se desfazer dele. Ao final morre e a família se sente aliviada.

Vou me ater a esta síntese para aguçar a leitura deste clássico, de poucas páginas, que pode ser lido em horas.

O livro faz refletir acerca das transformações nas quais passamos. Muitas vezes a vida é cheia de obstáculos e caminhos tortuosos e é interessante que Gregor em nenhum momento pretendia deixar seu trabalho, queria honrar seus compromissos, mesmo estando ou sendo diferente. Ou seja, tinha senso de responsabilidade, da cruz, do sacrifício que a vida e o convívio social lhe impunham. Mas, com o desdém da família, sobreveio-lhe a morte.

A crítica consiste claramente na reação dele e da família a estas realidades inescapáveis: sofrimento e a morte. Portanto o sacrifício de viver e a morte são as tônicas do livro.

Algumas pessoas tentam imaginar que o sofrimento inexiste, que é fruto da nossas cabeça, que é possível viver sem dor, sem perdas. Para falsear tal argumento basta questionar se é possível estar feliz e alegre o tempo todo. Sabemos que é impossível. Basta que um pai acorde a noite com o choro de seu filho (ainda que seja meramente por estar com frio e ter chutado as cobertas) para saber que, ao despertar, ainda que haja amor na atitude e que se precisasse faria isso mil vezes pelo pequeno, sentiria sono ou frio ou ficaria levemente aborrecido.

Ossuário na cripta da mencionada Igreja em Roma

A morte é a realidade mais dura que existe. A Igreja Católica representa bem em imagens, e particularmente na Igreja de Santa Maria della Concezione dei Cappuccini em Roma, onde caveiras deixam claro que essa deve ser uma preocupação constante.

Preocupar-se com ambas as coisas significa organizar atos e ideias que não os extingam, porque impossível. Como dito, são realidades inescapáveis. Mas a atitude frente a estas coisas precisa ser prudente e de se questionar: ainda assim é possível existir beleza?  Qual é a beleza do mundo atual?

Essa é a segunda crítica que, em Um Artista da Fome, o pensamento de Kafka nos deixa ainda mais evidente. O jejuador ficava numa jaula, porém além de tantos jejuadores tal atividade não era bem fiscalizada o que aos olhos do público fazia que duvidassem do seu jejum. O artista honrado, pois, sofria com o indiferentismo. A beleza acabou. Não para si, mas para os homens. Morreu. Foi substituído na jaula por uma pantera que “nada lhe faltava”, traziam-lhe “a comida que lhe agradava”,  “revoluteava e dava saltos”, “nem mesmo parecia lamentar a liberdade”. E ninguém se afastava dali para ver tal espetáculo.

Mais uma morte nas histórias de Kafka e o questionamento do que é a verdadeira beleza. As pessoas se apaixonam, mas a beleza está na partida, na esperança do reencontro, na saudade. O que seriam então da paixão se não fosse a ausência de quem é amado?

Certa feita minha mãe comentou de que amava os filhos indistintamente. Eu concordei discordando. Disse que se tivesse um filho deficiente o amaria mais. E não seria o correto? Não há beleza nisso?

A família de Gregor Samsa queria se desfazer dele, assim como se desfizeram do jejuador. É mais fácil optar por um caminho de evitar o sofrimento e a morte, simplesmente aniquilando-os. Acabe com o monstro e tudo melhorará. Substitua uma vida humana por um cachorrinho. Um estupro por um aborto.

Justamente por saber que a morte e o sofrimento são certos, mas também inesperados, é que devemos cuidar da vida, das pessoas, daquilo que importa, da cultura humana, dos valores que nos são sagrados.

Pietà, obra renascentista de Michelangelo.
Pietà de Michelangelo - Obra renascentista de beleza singular

Kafka é excêntrico e nos tira do eixo para que façamos questionamentos filosóficos a este nível e redescubramos o sentido da palavra beleza.